quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Contribuição ao debate: Educação Patrimonial e Educação Escolar

O texto a seguir foi enviado como colaboração aos debates do II ENEP, citado na postagem anterior.

Esta proposta de contribuição para os debates sobre Educação Patrimonial, como desdobramento do documento final do II Encontro Nacional de Educação Patrimonial (II ENEP) é uma discussão a respeito do diálogo possível entre a Educação Patrimonial e a Educação Escolar. A perspectiva aqui presente é baseada na atuação prática docente. Isto implica dizer que os argumentos aqui elencados representam o ponto de vista de um professor e não de um gestor de política pública.
A primeira ressalva que se faz é que não se pretende, com esse texto, resolver questões e propor soluções definitivas. A proposta é, antes de tudo, problematizar os pontos de confluência entre as duas naturezas de educação – a escolar e a patrimonial. Assim, podemos partir do princípio que, na prática, a educação escolar, a Escola, não assume como uma de suas tarefas prioritárias a Educação Patrimonial. Tanto é assim que o tema não é contemplado nos cursos formadores de professores. Existem algumas práticas, contudo, no ambiente escolar, que teriam como função suprir essas lacunas. Sobre algumas dessas práticas se discutirá mais à frente. Outro registro que se mostra importante é a respeito da inserção da Escola na esfera da cultura escrita letrada. Essa inserção ocorre mutuamente, com a Escola se inserindo nesse mundo da cultura letrada e vice-versa. O posicionamento dessa relação impõe uma hegemonia da cultura escrita na Escola, impossibilitando ou dificultando o relacionamento ou inserção de outras formas de registro e manifestação no ambiente escolar. Aqui se tem um primeiro ponto de contato entre a Escola e a Educação Patrimonial. Por estar inserida também dentro de uma lógica institucional, a política pública relativa ao Patrimônio vale-se do registro escrito como forma de validação de seus critérios sobre o que seja Patrimônio (ou pelo menos sobre o que seja um Patrimônio merecedor de preservação e cuidado por parte do poder público e, consequentemente, da sociedade toda). Como é de conhecimento, as políticas públicas de preservação do Patrimônio voltaram-se, primeiramente, para bens concretos, materiais, (prédios, objetos) cujo registro e assimilação por essa cultura letrada é muito mais fácil. Apesar de não contemplar todas as dimensões possíveis do Patrimônio, aqui talvez se tenha um ponto de contato que possibilitaria uma “entrada” da Educação Patrimonial no mundo da Educação Escolar. A referência na cultura letrada, nas mesmas formas de registro (escrito, institucional), pode facilitar o diálogo e a aproximação.
O Patrimônio não é, no entanto, composto somente da dimensão material. Hoje, as manifestações imateriais da cultura de um povo já gozam do status de bens patrimoniais a serem preservados. Essa modalidade de Patrimônio emana de práticas diversas e depende, principalmente, de alguns sujeitos conhecedores dessas práticas. Esses mestres populares vêm ganhando gradativamente o reconhecimento do Poder Público, o que tem propiciado a sobrevivência de certas práticas e saberes. Contudo, esse conhecimento é algo imaterial (como é da natureza do conhecimento) e, na maior parte das vezes, parte de referências culturais que não se baseiam no registro escrito da cultura. A lógica de reprodução e de atualização desses saberes opera em circuitos (culturais, sociais) em que a escrita e a educação formal não são determinantes. Isso não faz, por si só, impossível a entrada dessas formas de cultura no ambiente escolar. Uma alternativa seriam as chamadas “vivências”: momentos diferenciados em que os estudantes sairiam da aula tradicional e imergiriam em conhecimentos e experiências relacionadas a esses saberes. Essa modalidade, contudo, talvez reforçasse a noção de que esses conhecimentos são acessórios à Educação formal ou meros exotismos, ou ainda simples formalidades que precisam ser cumpridas. Para que isso não ocorresse seria necessário um planejamento extremamente criterioso desse processo, sendo tomados como um processo educacional de longo prazo, sem o imediatismo que caracteriza as metas e números que costumam avaliar a Educação.
Uma outra possibilidade seria, até mesmo mesclando-se à anterior, a inserção daqueles sujeitos ditos mestres populares no ambiente escolar. Essa alternativa seria mesmo interessante de ser praticada em um ambiente escolar voltado para a comunidade atendida. Para isso, parece-me, seria necessária a valorização da gestão democrática com intensa participação da comunidade. Isso porque os valores e saberes a serem transmitidos, comunicados poderiam tornar-se curiosidades exóticas se ministrados por um sujeito que não pertença àquela comunidade. Nessa visão, só faria sentido incluir essa forma de diálogo se aqueles conhecimentos a serem comunicados encontrassem eco na comunidade que os abriga. Assim, a Escola poderia abrir-se, sem preconceitos, ao que é do povo e deixar, ao mesmo tempo, de ser um corpo estranho, imposto pelo Poder Público, sem significação relevante à população que serve.
Enfim, o que se mostra é esse quadro empírico com algumas possibilidades e vários riscos. Como toda ação de educar, existe a necessidade de um equilíbrio entre as condições estabelecidas e a atuação pessoal, individual. Ao mesmo tempo em que são necessárias regras, leis, padronizações, também se fazem urgentes ações individuais que respeitem essa tensão: dar a cada coisa, a cada sistema de valores e conhecimentos o seu lugar, cuidando para que não se imponham predileções pessoais. Isso, contudo, é tarefa muito difícil, uma vez que o próprio ato aqui realizado de demonstrar opiniões e crenças pessoais guarda em si uma proposta de convencimento do outro.


Gabriel Ilário Lopes, professor de História, especialista em Educação: História, Cultura e Sociedade pela Universidade de Taubaté

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